Rodrigos, Zecas e o padrão que oprime do lado de lá
Rodrigo Hilbert pode ser uma estratégia de marketing: suas declarações de amor à esposa, seus dotes culinários, a tranquilidade com que lida e “estimula” o empoderamento de Fernanda Lima, a sua posição sobre a parte que cabe a cada membro do casal na divisão e manutenção do quinhão da vida compartilhada, principalmente em relação aos cuidados com filhos e como a casa etc. Queiramos ou não, Rodrigo é também um respingo da luta de nós todas. Não supera a assimetria de gênero nos pontos nodais, estamos longe disso, infelizmente, mas a necessidade de os casais rearranjarem seus tratamentos públicos para que sejam identificados como símbolo de união feliz, um padrão a ser seguido, já reorganiza outros paradigmas de projeção da vida doméstica, ainda que de maneira pasteurizada.
Claro que, na polêmica da semana, não poderíamos deixar de tocar, dentre tantos pontos que surgiram, no fato de Lázaro Ramos não ter sido, da mesma forma, aplaudido e reconhecido como fora Rodrigo. Sabemos que Lázaro é negro, e isso importa quando o assunto é tornar-se referência, mesmo que ele faça tanto ou mais que Rodrigo.
Mas é exatamente aqui que o curioso da reação masculina pode se esclarecer: o padrão. E, mais que isso – pois o homem sempre fora, nas relações hierárquicas basilares, impermeável aos estabelecidos padrões, uma vez que sua posição de domínio nos relacionamentos não era abalada, de forma decisiva, pelo enquadramento. A reação por parte dos homens revela o que o padrão significa, em termos barganha, de posição, discurso e poder.
Restrinjamos o fenômeno: muitos homens se coçaram para deslegitimar, por meio da chacota, a projeção de Rodrigo Hilbert como “Homão da porra”, depois, talvez, que se sentiram confortáveis por polêmicas por ele levantadas em seu programa de TV. Muitos desses homens, os que acompanho mais de perto nas redes sociais, se reivindicam, de forma discreta ou não, “homens da porra”, desconstruidões ou em processo.
Para sua campanha de desmerecimento da imagem de Rodrigo Hilbert ressuscitaram a figura do querido das massas Zeca Pagodinho, o grande fanfarrão brasileiro que encarna o pai e marido ideais. Zeca é isso mesmo, e sua imagem, durante muito tempo, referenciou a metáfora do melhor que podíamos projetar em termos de companheiro.
Pai amoroso, provedor, bonachão, marido presente e que nunca abandonou a mulher diante da “tentação” que é a vida pública; vive seu despojamento e se orgulha de sua origem humilde, sua barriga de Chopp, seus amigos leais, suas festas descontraídas e sua sinceridade.
Zeca era ótimo mesmo. Pode até ser que tenha sido um pai relativamente ausente, não sabemos, mas esteve ali no seio familiar, parece ser sinceramente amado e reconhecido por seus filhos; até aqueles que teve fora do matrimônio oficial. Sua esposa, sempre que aparece, se desvela em carinho, gratidão e força; ele também se mostra grato, pois ela não o abandonou nas “adversidades. Ela é, sempre, a figura da companheira ideal, que o amou, o aguentou, seu esteio. Zeca bebe e assume, e isso o humaniza. Zeca é música de fundo das reuniões festivas de minha família, e a identificação com as letras é sempre certa.
Saiamos do Zeca e pensemos na metáfora que ele projeta. A figura por trás dele – e não ele, de quem nada sabemos das relações domésticas, que fique claro –, tenciona reafirmar o espaço ideal do homem que deve ter sua parcela de ogro preservada. Esse homem poderia até ser um pai ausente, provedor ou não, desde que fosse amoroso e trouxesse presentes; ele poderia ter seus casos extraconjugais, mas nunca expondo a companheira ou a vulnerabilizando na comunidade em que vivem; ele poderia, até mesmo, “perder a cabeça em situações limites”, mas seria perdoado porque pediria perdão com flores, com carinhos ou outros expedientes que seriam a sua obrigação de fazer, em um relacionamento que se pretende equânime. Mas de tudo, talvez, o mais curioso – e confesso, o que mais me deleita, é o seguinte: ele pode, claramente, estar acima do peso, se vangloriar mesmo de ser indiferente aos padrões oficiais e a imagem de uma barriga mais saliente, uma barba por fazer, uma unha não tão cuidada serem abonadores de sua masculinidade, um charme necessário ao ethos masculino.
Isso me deleita porque, se tratarmos de padrão, aí o bicho pega do lado de lá: por um tempo, bastou tudo a eles, e a nós, a luta pelo enquadramento em figuras de Fernandas, Giseles e Taíses. Se tem muito da manutenção de certo padrão de beleza por trás da eleição de Hilbert como figura de “homão da porra”, se tem muita mina empoderada endossando o Hilbert, mesmo com suas ressalvas, se, em algum grau, o nosso empoderamento nos deu alguma margem de escolha, agora, cobramos também a fatura. Além da tentativa, às vezes honesta, muitas vezes fitosa, de desconstrução de paradigmas que não passam de discurso, a sua barriguinha, a unha, a barba por fazer, o perfuminho mais delicadamente escolhido, o bíceps aceitável, enfim, o padrão, meu amor, também vai ter que te enquadrar.
Não dissemos isso, ao menos não de forma séria e honesta, mas o nosso riso diante da reação desesperada de alguns textões trêmulos por parte deles são certo bálsamo, pelo reconhecimento de que eles não aguentariam um dia a pressão torturante a que todas nós, em muitas medidas e de tantas formas, somos submetidas.
“Poxa, avalista do teu corpo é o macho neh?”, parecem dizer; “rodar essa roda da hierarquia da escolha já tá demais, poxa”.
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* O lugar da fala acolhe a expressão de cada uma. As autoras do blog não interferem nas escolhas das colaboradoras quanto ao uso da linguagem, ao estilo de escrita, à gramática e à sintaxe. A revisão feita é meramente técnica, para correção de eventuais erros de digitação, todo o resto será tratado como opção de estilo da autora.
28, Doutoranda em Literatura Comparada pela UFRJ.Professora de Literatura da Seeduc-RJ. Diretora de políticas de promoção de equidades na UNA-LGBT, militante comunista e contra a opressão aos transexuais e travestis.